25/06/2025
Por André Ricardo Cruz dos Santos – Psicólogo (CRP 20/13431)
Você já se sentiu inquieto em momentos de calma? Já teve a estranha sensação de que a paz que você tanto buscou… agora parece desconfortável?
Essa experiência é mais comum do que parece. E não tem a ver com ingratidão ou “drama”. Na verdade, trata-se de um fenômeno compreendido pela psicologia, pela neurociência e pela psicanálise: o corpo e a mente se adaptam ao ambiente em que crescem. E quando esse ambiente é marcado por instabilidade emocional, conflitos, medo ou abandono, o caos passa a ser familiar. A paz, por outro lado, soa desconhecida — e, portanto, ameaçadora.
O ser humano não nasce pronto. Seu cérebro e sua subjetividade se desenvolvem nas primeiras interações com o mundo, especialmente com as figuras cuidadoras. Como afirmava o psicanalista Donald Winnicott, é no ambiente suficientemente bom que a criança desenvolve um senso de segurança interna.
Mas e quando esse ambiente falha?
Se a infância foi marcada por tensão constante, ausência emocional, gritos, punições imprevisíveis ou mesmo negligência afetiva, o corpo aprendeu a se manter em alerta. O sistema nervoso central foi condicionado a reconhecer perigo até onde ele não existe mais. Isso não é fraqueza — é sobrevivência.
Sigmund Freud, no início do século XX, já explicava que experiências traumáticas, especialmente as que não puderam ser simbolizadas (ou seja, compreendidas e processadas emocionalmente), tendem a retornar de forma repetida. Esse retorno pode se dar por meio de sintomas físicos, sonhos angustiantes, escolhas inconscientes e até padrões de autossabotagem. Como ele escreveu em Além do Princípio do Prazer (1920), existe algo no trauma que insiste em retornar.
Ou seja: o que não foi elaborado, o psiquismo tenta repetir — como se buscasse, paradoxalmente, uma forma de resolver.
Mais recentemente, o psiquiatra Bessel van der Kolk, em sua obra O Corpo Guarda as Marcas (2014), mostrou que o trauma não é apenas psicológico, mas também fisiológico. Ele afeta diretamente estruturas cerebrais como a amígdala (centro do medo), o hipocampo (memória) e o córtex pré-frontal (autorregulação emocional).
Em outras palavras: o trauma modifica o modo como o cérebro percebe a realidade.
O corpo entra num estado de hipervigilância — como se o perigo estivesse sempre à espreita, mesmo quando o ambiente é seguro. Por isso, pessoas que viveram traumas ou cresceram em ambientes instáveis podem ter reações desproporcionais à paz, ao silêncio, à ausência de conflito.
O neuropsiquiatra Daniel Siegel, autor do conceito de neurobiologia interpessoal, afirma que o cérebro é um órgão social — ele se desenvolve a partir das relações que estabelecemos. Isso significa que experiências afetivas precoces moldam a forma como lidamos com emoções, vínculos e segurança.
Ambientes afetivos caóticos formam cérebros em alerta. Por isso, a calmaria pode ser interpretada como “algo errado”.
A ausência de barulho, crítica ou tensão pode ser confundida com abandono. O silêncio pode parecer uma preparação para uma explosão. E o descanso pode parecer perigoso. Isso é o que chamamos, na clínica, de aprendizado disfuncional da segurança.
Por mais desejável que pareça, a paz exige um tipo de maturidade emocional que nem sempre foi possível desenvolver. Estar em paz requer confiar — em si, no outro, no mundo.
Como diz Carl Rogers, criador da Abordagem Centrada na Pessoa, o ser humano floresce num ambiente onde há aceitação incondicional, empatia e congruência. Para muitos, esse ambiente só é encontrado pela primeira vez na terapia.
É na relação terapêutica que o sujeito encontra, talvez pela primeira vez, um vínculo onde ele pode existir sem precisar estar em estado de alerta. Isso permite que, aos poucos, o sistema nervoso volte ao seu estado basal — aquele em que o corpo pode descansar, confiar, construir.
Como Winnicott escreveu, é só quando a criança sabe que há alguém que cuida, que ela pode se aventurar no brincar criativo. O mesmo vale para o adulto ferido: ele precisa sentir-se emocionalmente seguro para, enfim, construir algo novo.
Esse reaprendizado leva tempo. O cérebro tem plasticidade — ele pode aprender, reorganizar, reparar. Mas isso exige repetição, segurança, vínculo.
Se você sente que “quando tudo está bem demais, algo vai dar errado”, isso não é sinal de que você está quebrado. Pode ser apenas um sinal de que seu corpo está desaprendendo o caos — e ainda não reconhece a paz como segura.
E esse é um sinal de progresso.
A paz não é ausência de problemas.
A paz é presença de confiança.
Confiança no tempo, no vínculo, no seu próprio caminho emocional.
A psicoterapia é, antes de tudo, esse lugar onde você pode se reconstruir — com escuta, acolhimento e respeito pela sua história.
Você não está exagerando. Você está sentindo.
E sentir é o primeiro passo para se curar.